sábado, 17 de abril de 2010

Mimi & Eu

Sábado, 17 de abril de 2010.

Hoje eu me despedi de alguém que esteve comigo praticamente a metade da minha vida. Não consigo conversar com ninguém, preciso escrever. Eternizar isso que eu tô sentindo agora porque eu sei que, apesar de doer muito, vai passar. Mas eu não quero que passe, eu quero me lembrar desse dia sempre.

Eu tinha uns 12 ou 13 anos quando ela nasceu, aqui em casa. Gordinha e com os pêlos amarelos. Ainda pequena ela sobreviveu a uma chuva que tirou a vida de 1 ou 2 irmãozinhos dela. De manhã bem cedinho minha mãe saiu lá fora e ouviu um chorinho baixo, era ela, na chuva. Decidimos que era com ela que iríamos ficar, e doamos os outros. Minha mãe a batizou de Michele, mas só chamávamos de Mimi, ou Mizuca. Ela teve muitos filhos, e de todos só ficamos com uma, a Bolota, que hoje tem uns 5 ou 6 anos. Que brigava com ela e roubava a comida, mas nos últimos dias era como se ela soubesse, porque ia toda hora ver a mãe e lambia o rosto dela.

Quando eu tinha 15 anos, fui embora, mas voltava em todas as férias e ela sempre se lembrava de mim. E eu sempre tinha que me despedir, sempre ia embora chorando e pedia pra ela me esperar.

Ano passado eu voltei de vez, e ela ainda estava aqui. Velhinha, mas ainda cheia de vida. Sempre resmungona e preguiçosa. Todo mundo falava que ela era muito parecida comigo. De vez em quando escapava e dava umas voltinhas na rua, mas sempre voltava. Adorava sopa e macarrão e odiava feijão. Amava deitar em tapetes ou toalhas. Guardou e protegeu a casa até quando pôde; e quando não tinha mais forças pra isso, deixou o trabalho com a filha e ficou só descansando, curtindo a "aposentadoria".

Há uns 2 meses, ela começou a andar menos. Passava o dia todo deitada, não corria mais, não ficava saltitando quando eu vinha com o prato de comida. Eu ficava horas sentada do lado dela conversando e fazendo carinho. Eu conseguia compreendê-la e ela a mim mais do que qualquer outro cachorro que eu já tive. E já tive vários, já sofri por vários. Mas ela foi uma cachorra pra uma vida toda.

E hoje não teve jeito. Fui forte o suficiente pra conseguir pensar racionalmente no que devíamos fazer. Claro que eu cuidaria dela até o último segundo, mas não conseguia prolongar o sofrimento - dela e nosso -, sabendo que ela iria ficar cada vez pior. 13 anos. A idade chegou e não adiantava a gente fazer mais nada.

O médico disse que, se fosse gente, ela já teria mais de 100 anos. E eu me enchi de justificativas. Ela não consegue mais andar. As pernas traseiras estão inchadas e fracas, não aguentam o peso de uma cachorra grande e gorda. Não pode nem sair pra fazer suas necessidades. Não tem como alguém viver assim. Preciso pensar que ela teve uma vida boa e longa, e estava na hora de ir. Dormir.

Passei a tarde toda com ela. Conversei, ela bebeu água e leite e dividimos um pacote de Ruffles de churrasco. Às vezes parecia que ela queria se isolar, ir pra um cantinho e ficar sozinha, minha mãe disse que os cachorros fazem isso quando percebem que estão no fim da vida. Mas eu não deixei, queria ficar com ela o tempo todo.

O médico chegou às 20h. Fez um exame rápido e falou que ela podia estar com câncer, por causa da barriga e pernas inchadas. Podia até tentar um tratamento, mas pra quê submetê-la a isso? Como minha mãe disse, ela já teve uma vida boa, com casa e comida e carinho, não era melhor ir sem sofrer do que ficar prolongando isso?

Ela ficou olhando o médico com os olhos castanhos arregalados, alertas, mas sem levantar a cabeça, sempre deitada. Eu e a minha irmã ficamos do lado dela, fazendo carinho, tentando acalmá-la. Queria que ela soubesse que eu tava ali com ela, e ela sabia. Ele deu uma anestesia e ela ficou mais calma, quase dormindo. Depois colocou uma seringa enorme cheia de um líquido amarelo escuro...

Eu não me acho forte pra aguentar essas coisas, minha mãe e minha tia ficaram bem longe pra não ver, mas eu precisava ficar com ela. Por mais difícil que fosse, nunca ia deixar ela sozinha com um estranho nesse momento.

Só que agora eu não consigo me livrar de uma sensação ruim de culpa, como se ela contasse comigo pra fazer ela ficar bem e eu não fiz. Como se ela ainda quisesse continuar aqui, mesmo já não sendo a mesma de antes, e eu não deixei. Eu só ficaria tranquila se tivesse certeza que ela não me culpa por ter ido e que ela sabia que eu estava com ela sempre. mas isso eu nunca vou saber...

Muita gente, depois de perder um cachorro, diz que nunca mais vai ter nenhum, pra não passar por isso de novo. Mas esse é o preço que temos que pagar por anos de amizade, lealdade, companheirismo e amor incondicional. O cachorro não liga se você é chato, pobre, feio, se você briga com ele ou dá remédio. "Se você lhe der seu coração, ele lhe dará o dele" (Marley & Eu). Ele te ama sem exigir nada em troca.

Não consigo parar de chorar e lembrar dos últimos minutos de vida dela. E tentar não esquecer que foi melhor assim, que ela ia sofrer muito mais se a gente não fizesse nada. Porque, no fundo, não tinha mais nada a fazer mesmo.

Isso é tudo (e o mínimo) o que a gente pode fazer: cuidar e dar carinho durante toda a vida deles. Porque eles fazem isso muito mais pela gente.


"Os cães são o nosso elo com o paraíso. Eles não conhecem a maldade, a inveja ou o descontentamento. Sentar-se com um cão ao pé de uma colina numa linda tarde, é voltar ao Éden onde ficar sem fazer nada não era tédio, era paz."
(Milan Kundera)